álbum

Nara (1964)

Os Meus amigos são um Barato

1977

músicas / letras

Fazer este disco para mim foi uma alegria. Reencontro. Comigo e com os amigos. Ele tem, para mim, um valor de trajetória. A última música que gravei, do Tom, tem o papel de primavera. Me sinto como que desenhando um círculo, mas deixando uma fresta aberta para o que ainda pode acontecer. Meu passado, meu presente e meu futuro – pode ser óbvio – mas é assim que vejo esse trabalho. E nisso não estou sozinha. Menescal e eu já tínhamos tido vontade de fazer um disco assim, mas não acreditávamos na viabilidade do projeto.

Todo mundo trabalha, viaja e está sempre ocupado. Mas resolvemos tentar dessa vez. Encontrei Gil e pedi uma música. Isso em novembro de 1976. Em dezembro recebi a resposta. A música estava pronta. Fui ao estúdio, onde Gil fazia seu disco. Quando vi Gil cheio de trancinhas, cheio de alegria e energia, me apavorei e me encolhi. Fiquei mais tímida do que já sou, porque ele demonstrava tamanha descontração, que me senti tensa. Ouvi a música rapidamente e pensei: “não sou capaz de tamanha alegria e muito menos de gravar essa música”. E Gil dizia “olha, fiz essa música especial para você, mas não para a imagem que se tem de você. E eu tinha adorado a música. Sarará miolo. Depois de alguma inibição, perguntei: “o que quer dizer sarará miolo?” Gil me respondeu que, na Bahia, era assim que se chamava quem tem cabelo pixaim, mas é louro. Gil, dirigindo os músicos e tocando, é algo de estraordinário. É tão vital tudo que ele faz, num pique tão grande, que continuava com inveja do seu pique e pensava quanto era desanimada e gostaria de ser animada como ele. Mas, ao poucos, fui tomando coragem e consegui. Só mesmo Gil seria capaz de me fazer dizer “Yeahh”. O telefone toca no estúdio: “Menescal está? É o Donato”.

Menescal não podia atender naquele momento. Saí correndo. Estava louca para falar com Donato. Peguei o telefone e fui logo dizendo “você quer falar comigo?”

Donato chegou meia hora depois e gravamos Amazonas. Daí em diante Donato não me abanonou mais e participou de quase todas as faixas. Donato é uma pessoa incrível, que me faz rir o tempo todo. Figura doce, ao mesmo tempo aguda, com um tipo de sensibilidade que percebe tudo. Fala pouco, mas seus olhinhos vivos parecem de um bicho pequeno e lembram muito os de João Gilberto. Quando ele chegou pela primeira vez, fiquei tão nervosa, numa agitação cheia de felicidade. Senti a mesma emoção dos tempos da bossa-nova, quando ele era “aquele” monstro sagrado que todo mundo adorava.

Caetano mandou uma fita, com um recado: “Narinha, aí vai Odara. Sei que é seu aniversário. Odara quer dizer, em yorubá nagô, bonito, bom, bacana. Será que você vai gostar?”. Adorei. Caetano canta tão bem. Foi uma delícia cantar com ele. Parecia que havia uma comunicação não-verbal na escolha das músicas que me mandavam, pois era exatamente o que eu queria.

Flash back Menescal veio cantar comigo. A gente se lembrou de pescaria, lagosta, mero e tartaruga. Foi tudo muito engraçado.

Cantei o tempo todo pensando na Yara e num retrato que tirei com ela e uns badejos em Cabo frio. O Ronaldo esteve na gravação e parece que ficou contente.

Dominguinhos, que sensibilidade! Há muito tempo que eu queria gravar uma música dele e de Anastácia. A gente já tinha combinado, mas ainda não tinha dado certo. Erasmo tinha feito uma música pro meu show no Flag, em 1967, mas o disco do show acabou não saindo. O Tremendão é uma pessoa sensível e sempre simpatizei muito com ele, desde que o conheci nos áureos tempos dos musicais da Record. Adoro suas músicas e quando ele me mostrou Meu ego, achei forte, densa, de uma agressividade necessária. Agressividade que abre os olhos, que fala dos problemas de todo mundo. Liguei para o Edu. “Você tem alguma coisa para mim?” Edu apareceu com uma música bonia. Gravamos, mas achei que não estava dentro do espírito que pretendia, ou seja, não seguia o rumo que o disco tomou, a partir das primeiras músicas gravadas – de Gil e Caetano e da presença de Donato. Era uma canção um pouco “torturante”. Mas eu adoro o Edu e queria gravar uma coisa dele. Comprei seu último disco e descobri Repente, de parceria com Capinan. Era a síntese do disco: “só o ato, só a vida é mais ativa do que a morte”. Exatamente o que queria e precisava. A melodia simples, linda, que se prestava a uma série de brincadeiras. Sivuca estava no estúdio (tínhamos acabado de gravar sua música com Chico) e foi sensacional. O estúdio da Barra se transformou numa autêntica festa. Um forró nordestino tomou conta da gente. Foi tudo tão rico e animado. Sivuca, de olhos fechados, improvisando. Gil tocando triângulo. Chico, Edu e eu animados (vejam só...). A presença de Gil foi importantíssima nessa faixa. Nós (Chico, Edu e eu) precisávamos de alguém que puxasse o cordão da animação e conseguimos até improvisar. Ficamos nos gozando e Gil completamente solto.

Roberto Santana e eu brigamos e fizemos as pazes mil vezes. Ele é muito franco e entusiasmado. Apesar das brigas, foi muito estimulante trabalhar com ele. Um dia, Roberto chegou todo feliz: “trouxe um compositor inédito para você gravar”. E mostrou Nonó de Nelson Rufino. Fiquei pensando como cantar essa música. A cada música nova eu duvidava. Como cantar, como dar o recado? E a maneira que consegui foi aprendendo as músicas. No gravador, no carro, no caminho para a gravação. Queria ficar espontânea como os músicos. Nada escrito. A criatividade gravada no momento mesmo em que ela surgia. Queria perceber o significado da música e da letra na hora exata em que aquilo se tornasse também uma produção minha. Se aprendesse muito bem minha lição, se treinasse demais, na hora de gravar poderia já estar cansada da música (eu me conheço: quando fazia teatro, a graça acabava no dia da estréia. Só gostava enquanto estava descobrindo como fazer a coisa; o que gostava era do processo e não do resultado). Pedia uma música ao Chico. Ele me mandou uma de parceria com Sivuca sobre um tema infantil: João e Maria. Dias antes o Cacá tinha me chamado atenção para a conversa de Francisco e Isabel com alguns amigos, onde eles diziam: “eu era a princesa, eu era o cavalo”. Cacá observou que os tempos do verbo estavam no passado. Um faz de conta, mas ainda no passado. Quando vi a música de Chico, achei engraçado. Ele tinha percebido o universo infantil tão perfeitamente. Não falava pela criança, mas era a criança que falava. O Chico é fogo. Forma e conteúdo perfeitos. A gravação se passou muito tranqüila. O Sivuca é uma graça. Fazia questão que a gente chamasse seu instrumento de sanfona e não de acordeom. Deu um show de musicalidade e gentileza.

Carlinhos estava de mudança e foi complicado conseguir a fita. Quando telefonei para ele, me disse que tinha outras músicas pra me mostrar, além daquelas da fita. Aí eu respondi: “olha, já gravamos o play back, agora só falta você gravar comigo” No estúdio me lembrei de minha primeira gravação no seu LP “Depois do carnaval” e da importância de sua figura na passagem da bossa-nova para a canção de protesto.

A gente riu muito. Foi bom rever Carlinhos. Quando canto Cara bonita me lembro apenas de Francisco e Isabel.

Faltava Tom. Minhas gravações estavam sempre marcadas às segundas-feiras, dia que não tinha aula na PUC. Toda segunda-feira telefonava para o Tom e o convidava. Tom sempre tinha que ir ao dentista ou ao banco. Conversávamos muito no telefone sobre amigos, psicanálise e algumas outras fofocas. Mas nada de música. Enfim, ele disse que poderia ir, naquela segunda-feira, às sete da noite. Ás oito acabava meu horário, mas tinha dito a ele que poderia chegar até às três da manhã, que eu o esperaria. Ás oito horas, saímos da sala de gravação, mas ainda com uma esperançazinha que ele aparecesse. Ás oito e vinte toca o telefone da sala de Menescal. O Tom tinha chegado. Descemos. A gravação do Armando Pittigliani estava marcada para as oito e meia. Eu tinha dito que, se o Tom aparecesse, a qualquer hora que fosse, só sairia do estúdio se chamasse a polícia. Queria muito gravar com Tom.

Armando ficou contente de me ceder a sua hora. Quando Tom tocou o primeiro acorde, comecei a chorar. E pensei: “pronto, estrepei tudo, agora estou igual a um rio, não consigo parar de chorar, como é que vou gravar?”. Tentei prender o choro. Depois resolvi chorar até parar. Não via o Tom tocar fazia muito tempo. Encontrava com ele, às vezes, mas sempre fora do piano. E aquele som tão incrível me deixou emocionada. Tom queria saber o que íamos gravar. Menescal sugeriu Fotografia. Cantamos juntos, como na casa de Bené. Quando ouvi a gravação, a presença física de Tom era forte. Eu podia ver, a mim e a ele, tocando e cantando na sala, em casa. Foi um presente que os amigos me deram. Tocar e cantar comigo, como nos velhos tempos. Mas sinto uma modernidade no disco. Não se trata de nostalgia, muito pelo contrário. O velho revisto. O novo com sentimentos antigos, guardados. Estou feliz. É um disco que me comove. Estou contente por ter terminado o trabalho e com saudade dos momentos que passamos juntos no estúdio. Gostaria de falar de Meirelles com sua flauta de ouro e suas histórias, e agradecer a Helena, Roberto, Flávia, Marieta, Yara e a Cacá, que com suas presenças me deram apoio moral durante as gravações.

Meus amigos são mesmo um barato.